quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

*** O DIABO E O MONGE *** conto








 
Meus queridos..
             Quando eu tinha 13/14 anos, minha mãe me deu um livro encadernado em letras góticas e douradas.. que brilham até hoje na minha frente... Estou vendo-o.. Ele se intitulava "OBRAS PRIMAS DO CONTO UNIVERSAL".
             Foi talvez este livro que me despertou a vontade de escrever contos. Eu me lembro que um deles, dos diferentes contos que lá havia, chama-se o "O Velho Diabo". Uma obra prima fantástica de um escritor alemão do século XVIII chamado Friedrich öst Stuppnägel. Ele narrava a história de um diabo muito velho que, de saco cheio com a malvadeza, tinha optado por fazer um "retiro". E escolhera o átrio de uma velha igreja abandonada. Mas um velho pároco, também ele cansado da luta e desejoso de ter seus últimos dias na tranquilidade, resolve ativar novamente a velha igreja. Não é preciso que se se diga que acabam se encontrando os dois e... maravilha... o conto flui .. Longe de querer me comparar a Stupnägell, apenas serví-me das lembranças daquele conto para achegar algumas achas de lenha ao meu que, por sinal, tem um diabo novo...rsrs
             Beijos...
 
             *** O DIABO E O MONGE ***   

             O sofrimento dele o atraíu. Ele que simplesmente por alí passava, distraído e envolto em pensamentos. Foi a emissão dos raios de dor e angústia o fez estacar e entrar. ele era um diabo ainda novo, perambulando pelo mundo. Diferentemente de seus muitos irmãos, este diabo tinha um que de estranho.. Ele viu um monge rodeado de espíritos perdidos. Sentava-se num canto imundo do sótão da velha torre daquela igreja abandonada. O monge deixava que a fina chuva que invadia o cômodo pelas frestas do telhado danificado o atingissem no rosto. O diabo sentiu os pensamentos do monge envoltos num torpor quase malignos, enquanto tentava entender coisas que não deveria questionar.   pareceu-lhe um emaranhado de posicionamentos tolos de uma fé cristã que há muito tornara-se um fardo..pesado demais para que o monge pudesse suportar naquela idade.
             Aproximou-se dele...sem nenhuma intenção de fazer dele mais uma vítima. A maneira como os espíritos rodeavam a velha figura e sua indiferença a eles...apesar de estar claro que o monge os via e os sentia...fazia-o pensar e pensar...em sentidos...em certezas e razões, e na eloquência de suas ações...refletidas no torpor de sua mente perturbada. O monge não estava longe o bastante para sua percepção ignorá-lo...nem perto o bastante para seus sentidos o perceberem....umas de suas mãos acariciava a testa franzida..os olhos apertados no que parecia uma expressão de dor...o manto já sem cor cobria-lhe as dobras do corpo de uma maneira vulgar...por onde vagou esse velho sacerdote? De onde ele surgiu...? Ah... Por alguns instantes o diabo chegou até a pensar que o monge também fosse um espírito, que por alguma razão atraia a outros, visivelmente menores e sem forças...Então ele resolveu se mostrar...saiu das sombras por detrás do sino enferrujado que jazia no chão...imediatamente os outros espíritos se dissiparam...ficando ao seu redor apenas uma nuvem esbranquiçada e etérea que vez ou outra assumia a forma de um menininho perdido...

             O velho monge abriu seus olhos quando o diabo se aproximou...mas não demonstrava medo...abriu a boca,seus lábios ressecados silabaram algo que nem sentidos aguçados puderam decifrar...após relutar por alguns instantes com as limitações que sua reclusão impusera, o velho disse:
             – Tu os espantaste...também os libertaste?
             Sua voz era áspera...porém de uma lucidez que contrastava com sua imagem perdida e cansada...
             – Não – respondeu o diabo.. – eu não possuo tal poder...ainda..
             – É uma pena.... – disse o padre com pesar em sua voz –...é uma pena...porque eu não posso, também, ajudar....mas tu me aliviaste por alguns instantes...embora o pequeno Lucca ainda continue a me envolver e a me rodear em sua lamúria...
             O velho monge levou ambas as mãos junto ao rosto, unindo-as numa prece apertada e desesperada ...gemeu, sua voz, agora trêmula...O diabo se aproximou do velho...olhando ao seu redor procurando por vestígios, por respostas para esse tormento...que poucas vezes vira num mortal...Sentou-se à sua frente...O velho esquivou-se ao olhar dele...
             –Eu sei o que tu és... – disse o ancião– e te peço que se foi o anjo da morte que te enviou a mim, como o arauto de minha desgraça...volte!...e diga-lhe que minha desgraça acompanha-me em meus dias...eu me arrasto com ela já há muito tempo..

             O diabo riu.. baixinho... em respeito à dor do velho...e a consciência de que aquela dor era necessária...
             – Quem são essas almas que te perseguem? - Perguntou -
             – Almas...és tão generoso com elas...com sua aparência...com sua dor...Almas...almas existem quando a consciência ainda as domina...após essa morte tão violenta e desnecessária...tudo quanto resta de seus vestígios e pensamentos é dor...revolta...sem entender sequer a vida que abandonaram...e o pós-vida a que foram lançados...Deus...o que Deus reserva a eles senão esse sofrimento?...seria castigo ao próprio Satã?
             - Na verdade, velho homem - confessou-lhe o diabo - pouco sei sobre isto pois sou um diabo muito novo, ando pelo mundo à cata de experiência, à busca de mais fonte do mal, farta entre os homens.
O velho padre olhava-o agora curioso... com seus sentidos desenvolvidos....procurando, naquele diabo singular, algo que pudesse compreender...
             – E porque vires à casa do bem? Aqui, neste velho templo abandonado ainda existe a luz..- disse ele. E naquela hora, como que para corroborar o que o monge dizia, infiltrou-se um envergonhado raio de sol por uma das inúmeras frestas...a chuva parara..
             – Eu não me importo com a luz do sol...mesmo que seus primeiros raios sejam tão dolorosos, que me atinjam como flechas...
             – Tu és mais digno de tua condição do que muitos...sinto em ti tamanho domínio...e ao mesmo tempo...tamanha dúvida..quem és tu na verdade?

             O diabo não respondeu sua pergunta, embora a expressão cunhada em seu rosto deixasse claro que sua presença ali não poderia ser hostil...o olhar curioso do monge lhe era mais ameaçador do que sua presença para o velho padre...porém, tanto sofrimento e dor atraíam o diabo...era instintivo como já foi dito...ele não podia se furtar a estas manifestações, não pelo simples deleite em testemunhar tamanho martírio, mas sim pela curiosidade... de ser esse um fato tão raro em tanto tempo... como os velhos espíritos de Praga ou Bistritz...que muito o ensinaram sobre a dor... isso poderia ser como uma máscara ao seu próprio sofrimento...
             – Conte-me sobre os espíritos..quem são eles....que... representa para eles?
             – Ah...viestes para me torturar...para me fazer lembrar mais e mais...mais e mais por tudo o que resta dessa noite...se ao menos eu pudesse acreditar que podia libertá-los ao contar sobre eles...
             Enquanto ele me falava pude ver e ouvir nitidamente aquela nuvem ao nosso redor, vagarosamente se transformar no menininho, que com seus olhos fundos, seu rosto ressequido e pálido, corria ao padre e puxava suas vestes quase rasgando-as...
             – Este é Lucca –Disse ele... – Essa coisa que vês rasgando minhas vestes...um dia foi meu sobrinho Lucca...tinha oito anos apenas quando aconteceu...e eu testemunhei...um a um naquela noite...um a um se perder. Tanta ignorância, intolerância, medo...Eu vi...quando suas carnes foram rasgadas e o sangue arrancado de suas gargantas...como se suas almas...fossem arrancadas...eu sofri o horror duas vezes, diabo...ao vê-los morrer, impotente nas mãos daqueles carrascos, e sofri novamente ao testemunhar o desespero de suas almas, tentando se agarrar ao cordão que os unia ao corpo...algumas se jogavam contra seus assassinos...inutilmente desferindo golpes e mordidas...entenda, jovem diabo..que nenhum deles naquele momento tinha noção...e talvez Lucca não tenha até hoje, nenhum deles tinha nenhuma noção do que havia acontecido...que estavam mortos...e longe da salvação que devotaram em vida...isso é justo?...seria Deus justo?

             Então sua dor se explicava... e também sua revolta...a velha luta entre a crença na bondade de Deus e a descoberta da maldade...buscar a explicação para o sofrimento...e seu conhecimento nos espíritos...espíritos que sua fé cristã sempre negara...que conflito! O diabo admirou o monge por sua força...em conter suas blasfêmias...mas não pode sentir pena...pois a culpa que atribuía a si mesmo fazia dele mais um entre os fracos...
             –Diabo...Diga-me...em tua noite eterna...na hora de tua morte...encontrarás a Deus?
             - Hei de encontrá-lo. Afinal, velho, não sou eu também, uma de suas criações? Meu pai já pertenceu às suas hostes de luz. Entramos em tempos que são outros. Não consigo me ver, neste papel de demônio, sem me questionar nas raízes, talvez fazendo o caminho inverso ao de Lúcifer. E esta insatisfação, este mal estar.. é coisa de Deus a me tentar.. Há Deus nisso,velho?
             O velho monge riu, porém as gargalhadas pareciam ferir seus pulmões...sofria de tuberculose...e era nítido que procurara aquela solidão na velha igreja em busca de uma morte pacífica...junto aos seus espíritos...
             – O que vejo aqui?..- Disse o velho entre acessos de tosse - Perdeste tua fé no mal...
             –Eu nunca tive...nasci do próprio mal...Desconheço este sentimento....
             –Tragédia para tu então, meu pobre diabo – murmurou o velho - Eis que teus questionamentos são provas irrefutáveis de uma consciência. Consciência é uma arma tremenda do bem..

             Ele suspirou, procurando haustos de um ar difícil de absorver. Enxugando o rosto com as costas da mão....o diabo levantou-se...
             – Então já vai - Conseguiu dizer em arquejos - Fique mais um pouco...deixe-me invejar tua condição...
             – Invejaria minha imortalidade, velho? Dia chegará que ainda nos veremos.. não como estamos, meu velho..
             – Não – respondeu firmemente o velho monge – Não...Invejo tua capacidade de raciocinar com tal clareza...em meio à loucura...e ao círculo de morte, sofrimento e dor que te envolve...invejo o fato de que o sangue daqueles que desgraças .Alimente-lhe a vida...ao invés de morte...
             – Vida em morte...velho... não seria algo que gostaria de sentir...coloca a mão em teu peito, sente teu coração bater? 
             O velho meneou a cabeça fazendo que sim,
              - Pois conforta. E estes batimentos mostram a vida. Vidas dedicadas, pelo menos em síntese, a Ele.. Deus. Talvez seja esse o imenso prazer de um diabo como eu...pois esse vazio em meu peito...me comprime a minha condição...

             O velho monge deu um gemido dolorido, engoliu em seco e fechou os olhos...
             – Vou dormir diabo...preciso dormir...
             O velho cerrou os olhos e adormeceu.. Adormeceu rapidamente...e seus espíritos retornaram. Um a um se enfileiraram ao seu redor...e cantaram para ele um hino de mau agouro...Ao deixar a igreja, o jovem diabo caminhou pelo terreno abandonado em direção ao cemitério antigo...com suas lápides tortas e envelhecidas. Uma paz antiga tomara conta dele. Deitou-se na grama molhada e esperou, novamente, que novos raios de sol que vencessem o plúmbeo do céu, que atingissem seu rosto como gotas de cera derretida...A luz desceu do céu, respostando...mas logo o flagelo cessou...O diabo não tinha dúvidas quanto aos seus poderes e limitações...e conforme o velho tinha dito...isso lhe servia de conforto? O diabo não compreendia sacrifícios...por toda sua jovem vida, de apenas algumas centenas de anos ele os presenciara...e não podia agora, se conformar com a desist6encia do monge ante sua luta...que poder maravilhoso possuía ele para um mortal! Que ser das trevas não poderia se tornar? Ele teria consciência o bastante e fé o bastante para mudar suas condições...e a força gerada do sofrimento inglório poderia se uma alavanca poderosa, a lhe dar ainda mais mais forças para lutar...O diabo adormeu com esse devaneio...

             Quando voltou ao sótão na noite seguinte, ele encontrou o monge na mesma posição que adormecera...assim que o viu, soube que estava morto...morrera no sono, acalentado pelas vozes de seus espíritos...e eles já não se encontravam lá...Em um ímpeto de fúria, o diabo os procurou por toda igreja, procurou também pela alma do velho, mas não encontrou nenhum vestígio dela, nem rastros...nem sussurros....nem gritos...se foi em paz ele não saberia dizer...mas lamentou o fato de não ter tido chance de mostrar a ele tudo o que poderia oferecer. Será que ele aceitaria?.Talvez seus espíritos tivessem então, o castigo que mereciam...A luz da lua pálida, iluminava a noite que acabara de fazer-se plena...ele não iria infernizar a ninguém naquela noite...sentou-se novamente no cemiteriozinho para deixar que sua mente o levasse novamente para o passado. Que tempos eram esses?...Tempos desleais...Ele parecia embriagado no torpor dos pensamentos do monge que ainda ecoavam em sua mente...misturavam-se aos seus ...faziam-no rir...
             -Vida em morte velho...ao menos tu pode morrer...e não sentir nisso...vergonha.  Para mim...seria vergonhoso morrer agora...E um diabo não pode morrer..Mas posso pensar... pensar..
             E a chuva voltara a acariciar a noite...
 
             MariaAntonietaRdeMattos.
         setembro de 2005 

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