*** SENTADO COM O DIABO ***
Amigos,
Antes de ser rotulada como tendo feito plágio neste conto, preciso dizer que a idéia original de um diálogo fictício entre um ser humano e o demônio já foi amplamente utilizada na literatura, por grandes romancistas, escritores, ensaístas além de poetas. Vitor Hugo colocou um personagem à papear com o Senhor do Mal. Ígor Nessinski, fêz Bóris Nurtchev, o guarda livros do Czar Pedro o Grande, "contracenar" com o Diabo quando de suas andanças por São Petersbugo à cata de sonegadores . Não fui tão a fundo. Este é apenas um pálido ensaio que tem por escopo a distração momentânea... risos... Com vocês o Didí...
O dia não estava sendo muito generoso. Os motivos de sempre...Ele entrou numa livraria antiga e cometeu a besteira de comprar um livro de auto-ajuda. No ônibus, bem ao contrário do resto, encontrou um banco vago e por algum instante chegou a pensar em ficar feliz. Na hora lhe veio a frase batida..a felicidade se encontra nas pequenas coisas... Pequenas coisas: cobertura em bairro nobre, conta bancária recheada, mulheres, estabilidade no emprego. Essas foram as “pequenas coisas” que Didí catalogou mentalmente na hora. O lugar no ônibus não lhe fez, definitivamente, sentir nada parecido com felicidade. Serviu para amenizar o cansaço das pernas e o peso da pasta.
Sentou-se próximo à janela, cabeça caída no vidro e olhar distante. Não demorou muito e uma mulher sentou ao seu lado. Com o canto do olho percebeu que era bonita. Deu uma olhadela discreta, talvez menos discreta do que imaginara porque a moça apressou-se em cobrir as pernas com a revista que tinha nas mãos. Resmungou em silêncio. Um lugar na frente vagou e a moça não pensou mais de uma vez para levantar, deixando-o sozinho. Quase a puxou pelo braço, quase a chamou por um nome qualquer por não conhecer o verdadeiro.
Não ficou sozinho por muito tempo. Em seguida outra mulher atirou-se contra ele, cheia de sacolas plásticas do supermercado. Foi literalmente amassado contra a lateral do ônibus. Logo a raiva tomou conta de seu corpo, já exausto das desilusões daquele dia amargo. Lembrou-se de Um Dia De Fúria com Michael Douglas e lamentou por não ter uma metralhadora na pasta de couro. “Vou sacanear essa velha”, pensou de imediato. Pegou o livro de auto-ajuda e começou a folha-lo rapidamente, passando o dedo indicador pelas frases para fingir que estava lendo. A velocidade dos movimentos nitidamente começava a atiçar a curiosidade da mulher.
- Algum problema? – perguntou com a cara mais séria que conseguiu.
- Não... nada não. O senhor lê rápido, não é mesmo?
- Ah, a leitura! A senhora não se preocupe. Eu leio assim porque fiz um pacto com o diabo.
A mulher arregalou os olhos. Tinha a aparência daquelas senhoras bem religiosas, do tipo que não perde missa no domingo por razão nenhuma.
- É, é verdade. Um pacto com o diabo. – Ressaltava a entonação cada vez que pronunciava o nome do capeta. – Eu era pequeno. Tinha enormes dificuldades para ler na escola e sofria muito com isso. Então... Bem, a senhora compreende.
- Meu Deus do céu!
- Pois bem. Tive que sacrificar minha própria irmãzinha, com minhas próprias mãos de criança. Em troca o diabo me daria o dom de ler com incrível velocidade pelo resto dos meus dias.
Quase em pânico, a mulher tentou gaguejar alguma coisa, mas as palavras não saíram. Juntou apressada as sacolas que tinha colocado no chão e desceu na parada seguinte. Teve vontade de rir com o terror que provocou na pobre velha. Mereceria um prêmio da Academia, concluiu.
- Boa tarde.
Agora foi um homem que sentou ao seu lado. Franzino, com idade denunciada pelos cabelos que começavam a ficar brancos. Provavelmente usava um perfume barato.
- Eu disse boa tarde. – Insistiu o homem.
- Olhe aqui, amigo, eu não estou com vontade de conversar, está bem?
- Mas por quê? Eu sei que você está com muitos problemas. Conversar ajuda, ainda mais comigo.
- Com você? Grande coisa...
- Não se impressione: eu sou o que os humanos chamam de diabo.
Virou o rosto para olhá-lo, desconfiado.
- Está me achando com cara de idiota?
- Quer que eu responda?
Ignorou a ilustre presença. Ficou olhando a rua e os primeiros pingos da chuva que começavam a cair.
- Sabia que não acreditaria, até pela forma simples que eu adquiri aqui nesse corpo. Mas isso é bom sinal, porque se não acreditam em mim, não acreditam em Deus. Vocês andam meio descrentes ultimamente.
- Era o que me faltava! Você bem que poderia ser Deus ao invés do diabo...
- Seu deus é mais vaidoso do que pensa.
- Se isso fosse um filme, estaríamos em Los Angeles e você seria o Tom Cruise.
- Pra lhe dizer a verdade, o Brasil é um dos últimos lugares que escolhi. Quando cheguei, estipulei que a primeira pessoa que pronunciasse meu nome seria ofertada com a minha excitante companhia. Cá estou, ao seu lado.
Todas as infelicidades do dia lhe fizeram dar continuidade àquele diálogo supostamente idiota. Era, de fato, o último acontecimento trágico que lhe restava: a visita da mais maligna entidade do universo.
- Me dê uma prova de que é o diabo de verdade.
- Simples. Perceba como ninguém nos ouve ou nos nota.
Olhou em volta. Todas as outras pessoas mantinham-se na mais absoluta normalidade comportamental. Quis provar a capacidade do capeta e para tal soltou um grito, audível em qualquer posição do coletivo:
- Católicos filhos da puta! O demônio veio pegar vocês todos!
Apesar do escândalo, ninguém moveu um músculo.
- Você não acha que eu deveria estar assustado, apavorado ou alguma coisa parecida? – perguntou ao visitante, com uma voz preguiçosa que refletia seu estado de espírito.
- As coisas não têm sido muito boas pra você ultimamente. Não há muito mais a perder, logo não há motivos para o medo.
- Você deve estar contente com isso. Mais um católico fodido...
- Calma. Não sou tão ruim quanto pregam por aí. Tristeza alheia não me faz feliz. No fundo, sou bom como qualquer outro anjinho besta desse céu azul calcinha que hoje está cinza.
- Então é verdade que você é um anjo rebelde?
- É, pode se dizer que sim. Sou o irmão caçula de uma família riquinha, mais inteligente e mais bonito que os outros irmãos. Ao invés de bajulado, como é o normal, sou o problema, sou aquele que leva a culpa pelos vasos quebrados. Excluíram-me num quartinho mal-cheiroso e quente, que é o inferno. Meu pai, que é Deus, mora na sua mansão azul.
- O céu?
- Isso mesmo. Sou, sem dúvida, parecido com Ele. Sou, na verdade, alguma coisa indescritível criada para assumir as culpas dos erros de Deus, que fica sendo o perfeito da história. Deve-se reconhecer a esperteza do Velho.
Não se esforçou para compreender o que estava acontecendo. Era doentio, era inverossímil, mas proporcionava-lhe um estranho conforto que não pretendeu questionar.
- Por quê você está me dizendo tudo isso? Logo pra mim...
- Vejo que você é um cara discreto. Te contei muitas verdades, mas sei que você não vai sair fazendo fofoca pelo mundo. Não sou marketeiro como o Gostosão lá de cima. Prefiro continuar na minha.
- Desse jeito estou até sentindo pena do diabo.
- Não, não sinta pena de mim. Também não sou tão bonzinho assim...
Ficou observando o homem levantar e, logo depois, descer do ônibus. Sorriu ao perceber que o diabo também esquecera o guarda-chuva. Engraçado - pensou Didí.. A vida imita a arte?.. Dr Fausto teve um destino trágico por se envolver com o Diabo... Bóris Nurtchev também se estrepou.. Eu falo com o tinhoso, ele se levanta, vai-se embora assim, sem mais e nem menos... e ainda se esquece do guarda chuvas...Encostou novamente a cabeça na janela. Queria dormir só para ver se não acordava já na cama de casa, suado, percebendo que tudo não passava de um sonho louco, como acontece com os mocinhos nos filmes de Hollywood. Nem notou o cabo de alta tensão que, chicoteou na esquina com um ruído gargalhante e se enroscou no ônibus....
Antes de ser rotulada como tendo feito plágio neste conto, preciso dizer que a idéia original de um diálogo fictício entre um ser humano e o demônio já foi amplamente utilizada na literatura, por grandes romancistas, escritores, ensaístas além de poetas. Vitor Hugo colocou um personagem à papear com o Senhor do Mal. Ígor Nessinski, fêz Bóris Nurtchev, o guarda livros do Czar Pedro o Grande, "contracenar" com o Diabo quando de suas andanças por São Petersbugo à cata de sonegadores . Não fui tão a fundo. Este é apenas um pálido ensaio que tem por escopo a distração momentânea... risos... Com vocês o Didí...
O dia não estava sendo muito generoso. Os motivos de sempre...Ele entrou numa livraria antiga e cometeu a besteira de comprar um livro de auto-ajuda. No ônibus, bem ao contrário do resto, encontrou um banco vago e por algum instante chegou a pensar em ficar feliz. Na hora lhe veio a frase batida..a felicidade se encontra nas pequenas coisas... Pequenas coisas: cobertura em bairro nobre, conta bancária recheada, mulheres, estabilidade no emprego. Essas foram as “pequenas coisas” que Didí catalogou mentalmente na hora. O lugar no ônibus não lhe fez, definitivamente, sentir nada parecido com felicidade. Serviu para amenizar o cansaço das pernas e o peso da pasta.
Sentou-se próximo à janela, cabeça caída no vidro e olhar distante. Não demorou muito e uma mulher sentou ao seu lado. Com o canto do olho percebeu que era bonita. Deu uma olhadela discreta, talvez menos discreta do que imaginara porque a moça apressou-se em cobrir as pernas com a revista que tinha nas mãos. Resmungou em silêncio. Um lugar na frente vagou e a moça não pensou mais de uma vez para levantar, deixando-o sozinho. Quase a puxou pelo braço, quase a chamou por um nome qualquer por não conhecer o verdadeiro.
Não ficou sozinho por muito tempo. Em seguida outra mulher atirou-se contra ele, cheia de sacolas plásticas do supermercado. Foi literalmente amassado contra a lateral do ônibus. Logo a raiva tomou conta de seu corpo, já exausto das desilusões daquele dia amargo. Lembrou-se de Um Dia De Fúria com Michael Douglas e lamentou por não ter uma metralhadora na pasta de couro. “Vou sacanear essa velha”, pensou de imediato. Pegou o livro de auto-ajuda e começou a folha-lo rapidamente, passando o dedo indicador pelas frases para fingir que estava lendo. A velocidade dos movimentos nitidamente começava a atiçar a curiosidade da mulher.
- Algum problema? – perguntou com a cara mais séria que conseguiu.
- Não... nada não. O senhor lê rápido, não é mesmo?
- Ah, a leitura! A senhora não se preocupe. Eu leio assim porque fiz um pacto com o diabo.
A mulher arregalou os olhos. Tinha a aparência daquelas senhoras bem religiosas, do tipo que não perde missa no domingo por razão nenhuma.
- É, é verdade. Um pacto com o diabo. – Ressaltava a entonação cada vez que pronunciava o nome do capeta. – Eu era pequeno. Tinha enormes dificuldades para ler na escola e sofria muito com isso. Então... Bem, a senhora compreende.
- Meu Deus do céu!
- Pois bem. Tive que sacrificar minha própria irmãzinha, com minhas próprias mãos de criança. Em troca o diabo me daria o dom de ler com incrível velocidade pelo resto dos meus dias.
Quase em pânico, a mulher tentou gaguejar alguma coisa, mas as palavras não saíram. Juntou apressada as sacolas que tinha colocado no chão e desceu na parada seguinte. Teve vontade de rir com o terror que provocou na pobre velha. Mereceria um prêmio da Academia, concluiu.
- Boa tarde.
Agora foi um homem que sentou ao seu lado. Franzino, com idade denunciada pelos cabelos que começavam a ficar brancos. Provavelmente usava um perfume barato.
- Eu disse boa tarde. – Insistiu o homem.
- Olhe aqui, amigo, eu não estou com vontade de conversar, está bem?
- Mas por quê? Eu sei que você está com muitos problemas. Conversar ajuda, ainda mais comigo.
- Com você? Grande coisa...
- Não se impressione: eu sou o que os humanos chamam de diabo.
Virou o rosto para olhá-lo, desconfiado.
- Está me achando com cara de idiota?
- Quer que eu responda?
Ignorou a ilustre presença. Ficou olhando a rua e os primeiros pingos da chuva que começavam a cair.
- Sabia que não acreditaria, até pela forma simples que eu adquiri aqui nesse corpo. Mas isso é bom sinal, porque se não acreditam em mim, não acreditam em Deus. Vocês andam meio descrentes ultimamente.
- Era o que me faltava! Você bem que poderia ser Deus ao invés do diabo...
- Seu deus é mais vaidoso do que pensa.
- Se isso fosse um filme, estaríamos em Los Angeles e você seria o Tom Cruise.
- Pra lhe dizer a verdade, o Brasil é um dos últimos lugares que escolhi. Quando cheguei, estipulei que a primeira pessoa que pronunciasse meu nome seria ofertada com a minha excitante companhia. Cá estou, ao seu lado.
Todas as infelicidades do dia lhe fizeram dar continuidade àquele diálogo supostamente idiota. Era, de fato, o último acontecimento trágico que lhe restava: a visita da mais maligna entidade do universo.
- Me dê uma prova de que é o diabo de verdade.
- Simples. Perceba como ninguém nos ouve ou nos nota.
Olhou em volta. Todas as outras pessoas mantinham-se na mais absoluta normalidade comportamental. Quis provar a capacidade do capeta e para tal soltou um grito, audível em qualquer posição do coletivo:
- Católicos filhos da puta! O demônio veio pegar vocês todos!
Apesar do escândalo, ninguém moveu um músculo.
- Você não acha que eu deveria estar assustado, apavorado ou alguma coisa parecida? – perguntou ao visitante, com uma voz preguiçosa que refletia seu estado de espírito.
- As coisas não têm sido muito boas pra você ultimamente. Não há muito mais a perder, logo não há motivos para o medo.
- Você deve estar contente com isso. Mais um católico fodido...
- Calma. Não sou tão ruim quanto pregam por aí. Tristeza alheia não me faz feliz. No fundo, sou bom como qualquer outro anjinho besta desse céu azul calcinha que hoje está cinza.
- Então é verdade que você é um anjo rebelde?
- É, pode se dizer que sim. Sou o irmão caçula de uma família riquinha, mais inteligente e mais bonito que os outros irmãos. Ao invés de bajulado, como é o normal, sou o problema, sou aquele que leva a culpa pelos vasos quebrados. Excluíram-me num quartinho mal-cheiroso e quente, que é o inferno. Meu pai, que é Deus, mora na sua mansão azul.
- O céu?
- Isso mesmo. Sou, sem dúvida, parecido com Ele. Sou, na verdade, alguma coisa indescritível criada para assumir as culpas dos erros de Deus, que fica sendo o perfeito da história. Deve-se reconhecer a esperteza do Velho.
Não se esforçou para compreender o que estava acontecendo. Era doentio, era inverossímil, mas proporcionava-lhe um estranho conforto que não pretendeu questionar.
- Por quê você está me dizendo tudo isso? Logo pra mim...
- Vejo que você é um cara discreto. Te contei muitas verdades, mas sei que você não vai sair fazendo fofoca pelo mundo. Não sou marketeiro como o Gostosão lá de cima. Prefiro continuar na minha.
- Desse jeito estou até sentindo pena do diabo.
- Não, não sinta pena de mim. Também não sou tão bonzinho assim...
Ficou observando o homem levantar e, logo depois, descer do ônibus. Sorriu ao perceber que o diabo também esquecera o guarda-chuva. Engraçado - pensou Didí.. A vida imita a arte?.. Dr Fausto teve um destino trágico por se envolver com o Diabo... Bóris Nurtchev também se estrepou.. Eu falo com o tinhoso, ele se levanta, vai-se embora assim, sem mais e nem menos... e ainda se esquece do guarda chuvas...Encostou novamente a cabeça na janela. Queria dormir só para ver se não acordava já na cama de casa, suado, percebendo que tudo não passava de um sonho louco, como acontece com os mocinhos nos filmes de Hollywood. Nem notou o cabo de alta tensão que, chicoteou na esquina com um ruído gargalhante e se enroscou no ônibus....
MariaAntonietaRdeMattos.
maio de 2000